De ontem e de hoje – Falência
por Licínia Quitério
Com voz seca e bem timbrada, a juíza proferiu, nos termos da lei, a sentença: FALÊNCIA. Logo fechou os livros, tirou os óculos e arredou ligeiramente a cadeira para melhor se levantar. Se fosse num filme, teria surgido a palavra FIM sobreposta a uma última imagem definitivamente paralisada. A assistência engoliu por breves segundos a palavra sentenciadora, há tanto esperada quanto temida, que sobre eles acabava de desabar.
Os homens e mulheres, de cabeleiras maioritariamente acinzentadas, levantaram-se. Lentamente, sem sobressaltos exteriores, olhos no chão ou olhos nos olhos, das gargantas foram-se desprendendo à toa palavras de fingida conformação, de falso alívio.
Arrastaram-se pelo corredor sombrio e foi como se uma força oculta, vinda das garras do passado comum, os tentasse prender ao chão. Em grupos gerados ao acaso, ligados por dezenas de anos de intensa vivência feita de lutas, de precariedades, de humilhações, também de alegrias, de pequenos e grandes afectos, tardavam em separar-se.
Pouco a pouco, as línguas foram-se soltando, em frases desgarradas, aparentemente sem qualquer nexo. Aqui e além, a raiva explodia, finalmente incontida, transbordado o cálice: Vigaristas! Bandidos! Deixei lá os melhores anos da minha vida! Foi melhor assim! Aquilo já não era nada! E o que mais me custa é que o trabalho nunca faltou! Foi golpada, ninguém me convence do contrário!
Referiam-se ainda, com calor, às suas máquinas, às suas ferramentas que por lá ficaram para um dia destes serem tocadas por mãos que nunca as amaram ou odiaram e que lhes darão um rótulo, um número, um preço…. Virá o leilão: Quem dá mais por uma máquina a quem arrancaram o homem ou a mulher que a fez vibrante, ruidosa, produtiva?
Antes do fim da tarde fria, debandaram como pombos feridos em busca do asilo nocturno. Trocaram acenos quase imperceptíveis, deixaram escapar a custo brevíssimas expressões de um mesmo adeus: até sempre, até à vista, a gente vê-se por aí…
Licínia Quitério
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